sexta-feira, 4 de março de 2011

TEXTO: ANALFABETA



Eram cinco horas da manhã.

Acordou cedo e, pulando um dos filhos que dormia no chão aos pés da cama, foi para o outro cômodo do barraco fazer café.
Voltou para acordar a filha Vera Lúcia que dormia profundo, mas que precisava acordar cedo, pois, o Shopping Plaza Osasco, onde trabalhava, ficava a dois ônibus e um metrô de distância. Muito longe, portanto.
Maria da Conceição da Silva, cinqüenta e quatro anos, analfabeta, era mulher sacudida, peitos espaçosos, de cor negra, dentes ilesos e alvos. Morava em Itaquera, num barraco firme, com seus sete filhos e o querido marido José, que por sinal acabava de chegar do trabalho de vigia noturno.
Com um “Bença mão e um Deus te abençoe filha”, Vera Lúcia despediu-se, ainda com uma bolacha na boca, o seu café-da-manhã. Realmente. Deus a teria de abençoar demais naquele dia.
Maria da Conceição tinha que correr para deixar o almoço pronto e partir para o seu trabalho de faxineira, numa agência de viagens no centro de Osasco.
Dizem que notícia ruim sempre corre depressa e Maria da Conceição foi uma das primeiras a saber que no shopping onde trabalhava a filha, houve uma explosão de gás.
Não tirou o uniforme, não pediu licença, não avisou a ninguém e bateu em retirada, pois o seu coração de mãe ordenava que fosse ver a filha, onde ela estivesse. Correndo desesperada pelas ruas de Osasco, ouvia dizer de centenas de mortos e feridos. Ambulâncias, helicópteros, carros de polícia, bombeiros, tudo se misturava nos olhos da pobre mulher.
Parou a uma certa distância e viu a cena medonha do desabamento, dos destroços, da destruição; ela nunca mais conseguiria esquecer o que presenciava. “Deus faz e não explica”, sussurrou.
Parada, boquiaberta, confusa nem percebeu estar justamente no caminho que levava a uma ambulância ali perto estacionada. Por circunstâncias que ninguém explica uma velha maca conduzida por dois bombeiros, teve que parar bem na sua frente.
- Vera Lúcia, Vera Lúcia minha filha, - gritou ela, estendendo as duas mãos, como querendo adivinhar quem estava lá dentro.
- Não é Vera Lúcia, dona, este é um homem e está morto. – Respondeu-lhe apressadamente um dos homens. Para saber quem está vivo ou morto vá até o Hospital Municipal que lá eles darão notícias.
Veio-lhe a certeza que sua filha havia morrido.
Maria recuou na calçada o suficiente para encostar-se, amparou a nuca na parede, fitou o céu azul e sentiu o chão faltar-lhe aos pés. A perna direita amoleceu e ela não sabia mais onde estava, em que rua, em que bairro, em que cidade, em que país. Parecia então que não existia. Não posso garantir, mas tenho certeza de que Maria da Conceição, por alguns segundos, experienciou o nada, isto é, a morte.
Mas Deus dá o frio conforme o cobertor e ela acionou suas forças internas, aprumou-se, enxugou as lágrimas e zarpou em direção ao hospital.
Lá chegando, com a inocência de uma criança, perguntava a todos se alguém tinha visto Vera Lúcia, ao que evidentemente, não obtinha resposta alguma. Um senhor aproximou-se e, entre amoroso e apressado, disse-lhe que havia duas listas pregadas na parede, uma dos mortos, outra dos vivos e que ela fosse procurar pela sua filha.
Com muita dificuldade e igual empurra-empurra, soletrando reza aproximou-se das listas. Se por um lado esquecia-se que era analfabeta, por outro confiava nela própria, pois o que sabia ler na vida eram unicamente os nomes dos sete filhos e do marido.

Aproximou-se e leu assim:


 
Xxxxxxxxxxx xxx xxxxxxx xxxxx



Xxxxxxxxx xx Xxxxxxxx Xxxxxxxx

Xxxxxxxxxxxxxxx xxx Xxxxxxxxx

Xxxxxxxxxxxxxxxx Xxxxxxxxxxxx

Xxxxxxxxxx Xxxxxxxxxxx Xxxxxxxxxxx

Xxxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxxxxxxx Xxxxxxxxxxxxxx

Xxxx Xxxxx Xxxxxxxxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxxxxx

Xxxxxxxxxxxxxxx xxxxxxxxxxxxxxxx Xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

Xxxxxxxxxxxxxxx xxx Xxxxxxxxx

Xxxxxxxxxxxxxxxx Xxxxxxxxxxxx

X xxxxxxxx Xxxxxxxxxxx Xxxxxxxxxxx

Vera Lúcia da Conceição da Silva

X xxxxxxxx Xxxxxxxxxxx Xxxxxxxxxxx

Xxxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxxxxxxx Xxxxxxxxxxx

Xxxx Xxxxx Xxxxxxxxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxxxxx

Xxxxxxxxxxxxxxx xxxxxxxxxxxxxxxx Xxxxxxxxxxx

Xxxxxxxxxxxxxxx xxx Xxxxxxxxx

Xxxxxxxxxxxxxxxx Xxxxxxxxxxxx





Leu o nome da filha. Pronto, é o que mais queria na vida. Sim, estava lá. Ela a encontrara.
Porém, novamente sentiu um frio, uma horrível dor de barriga e incontroláveis arrepios na pela. O ar lhe faltava, a vista escurecia e ela já não ouvia. O nome da filha, em que lista estaria? Na dos vivos ou na dos mortos? Meu Deus, isso ela não sabia ler.
Novamente aproximou-se das listas com o peito apertado, como se um pomo-de-adão estivesse a asfixiar-lhe a garganta seca. Os lábios tinham aquela gosma branca de quando se fala muito ou se tem um ataque epilético.
Conseguiu agarrar o braço de um homem que estava ao seu lado e sem poder falar olhou profundamente em seus olhos. Levando-o bem perto das listas seguiu com o dedo indicador até o princípio das palavras que lá estavam escritas e sublinhou fortemente embaixo delas. Como na hora do desespero as pessoas se entendem pelo olhar e pelos gestos, o homem compreendendo tudo gritou em seu ouvido: listas dos vivos.

Maria da Conceição, a analfabeta que sabia ler com o coração desmaiou e só acordou horas depois.



 

Paulo Afonso Caruso Ronca

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